Nesta rota da infância que tento percorrer nestes dias, lutando contra as mudanças inexoráveis dos anos, dou comigo, hoje, à procura dos pires de trigos e de figos passados, do milho cozido fervendo na panela, do musgo, da ervilhaca e da azáfama para fazer o presépio, com as figurinhas de barro.
Por entre as veredas do onírico, revejo um Natal diferente que me transporta à década de cinquenta, onde o ser prevalecia sobre o ter, e o sonhar dispensava bastante o comprar. Era tudo tão simples e tão sentido, como é próprio das crianças.
Vivia-se mais (pelo e para)o convívio familiar e nas casas dos amigos o menino" mijava" sempre em qualquer casa. O hábito de, durante a noite, visitar os vizinhos e parentes não se cingia apenas aos dias 24 e 25 de Dezembro, mas estendia-se, também, à noite do primeiro dia do Ano Novo e ao dia 6 de Janeiro, chamado Dia de Reis, com que encerravam as festividades.
As mensagens de paz e de solidariedade não necessitavam de campanhas, nem de dias mundiais, nem de bênçãos papais "urbi et orbi". Mesmo que os houvesse, dificilmente teriam eco nestas ilhas aonde só chegavam pela rádio, através da onda curta, e nem sempre nas melhores condições acústicas.
Os casos de violência eram muito raros e aproveitava-se a época para a reconciliação." Paz na Terra aos homens de boa vontade "ecoava nos espíritos dos cristãos, na grande noite do Natal. Não como um mero "slogan", mas antes como um pulsar de vida.
Percorrendo a rota da infância, vou tentando refazer a imagem daquelas noites cheias de escuridão, mas, apesar de tudo, que aqueciam o coração. Hoje gostaria de pisar os paralelepípedos, os caminhos de macadame e as veredas de terra batida, salpicada de cascalho, porém, ao mesmo tempo sou encadeado pelas luzinhas multicores que se espalham através dos vidros, em nome de tradições importadas, desgarradas da história do nosso viver, manifestações artificiais dum sentir diferente, num tempo que mudou e transformou a nossa vida. É a aldeia global dos nossos dias.
Procuro libertar-me desta dicotomia de querer viver dois tempos: o da infância, que me habita e me insufla o ânimo, e o tempo da implacável erosão da existência, apontando o outono da vida que já me atormenta. Tenho temperado este dualismo, simulando viver na cidade e ao mesmo tempo permanecer no campo, onde o húmus da terra é mais forte e mais consistente a nossa trajectória humana perante o infinito do desconhecido, esse infinitamente grande de que falava Blaise Pascal, filósofo francês, matemático e físico do século XVII.
Entretanto, entrecruzam-se imagens do passado e do presente a repercutirem-se em atitudes e estilos de vida, mas que a educação e a formação cultural não conseguem criar distanciamento perante o carácter avassalador e consumista das festividades natalícias hodiernas.
Actualmente, a imagem e a lição do presépio estão profundamente alteradas. Os povos latinos deixaram-se seduzir pelas árvores, pelos pais natais, e por toda a pirotecnia lúdica e inventiva dos países nórdicos. As comezainas e a exteriorização da riqueza, e do valor comercial dos presentes são a antítese da pobreza, patente na manjedoura onde nasceu o Menino Jesus.
O Natal da intimidade familiar passou a exterioridade pública e adorno social. Até a culinária tradicional foi quase toda abandonada ou falsificada. Novas iguarias e outras bebidas foram introduzidas com os prejuízos daí resultantes para os nossos comerciantes locais e para a preservação das belas tradições.
É urgente também que, nos dias de hoje, cada um assuma claramente o seu papel em relação à defesa, à coerência ou à incoerência dos valores e das crenças, e quanto ao uso de uns e de outras. E para que eles e elas servem. Caso contrário, viveremos num "bric-à- brac "de abulias e irresponsabilidades perante a personagem daquele que antes se pretendia e, ainda, alguns (poucos) pretendem homenagear com algum espírito franciscano, seguindo o exemplo do Menino Jesus, pobremente nascido no desconforto de uma manjedoura entre animais.
Num tempo de tanta tecnologia de ponta, nota-se pouco interesse pela apologia e valorização dos valores humanistas e pelo desenvolvimento espiritual do ser humano, mas, ao invés, emergem e imperam o abusivo materialismo, o excessivo consumismo e os desperdícios intoleráveis, quando no nosso século XXI há ainda tanta gente passando fome, à nossa beira, e em inúmeros outros lugares do nosso planeta.
Estes aberrantes comportamentos, infelizmente, mostram-se cada vez mais insensíveis e indiferentes aos maiores problemas dos nossos dias, tão conturbados em tantos países, devido à pobreza, às fomes, às injustiças, às guerras, às mentiras e hipocrisias, aos egoísmos e ganâncias de indignos seres humanos, e também às diferenças de atitudes de muitos habitantes em relação às calamidades naturais, cada vez mais, frequentes e avassaladoras para todos. O tempora o mores!.
António Neves Leal
Dezembro 2024
